Coluna – Ricardo Cury – Dead Billies from Hell
Em 1997, os Dead Billies foram fazer dois shows, no mesmo fim de semana, em Aracaju.
- Vocês ficam aqui em casa – disse o brother Gilmar, que foi baterista de uma banda chamada Zona Abissal.
Chegaram na casa de Gilmar (ele estava viajando), arrumaram as bagagens e foram para a varanda do apartamento. Os fumantes acenderam seus cigarros enquanto discutiam sobre o que fazer naquela tarde livre, antes do primeiro show. Resolveram ir para a praia. Deixaram a chave do apartamento na portaria, pois o amigo Rogério Big Brother chegaria de Salvador depois deles e também se hospedaria lá. Após duas horas de sol e cerveja, lembraram de ligar pro apartamento pra saber se Big Brother já tinha chegado. Foram até o orelhão mais próximo:
- Alô!
- Big? Já chegou?! – perguntou Rex, o baterista dos Dead Billies.
- Já. Cheguei tem uma meia hora…
- E aí, tudo beleza?
- Rapaz… Tirando o incêndio, tá tudo beleza…
- Hein?
- Incêndio.
- Que incêndio?
- O apartamento pegou fogo.
- Hein? Que apartamento?
- Esse aqui que eu estou e que a gente ia dormir… Tá tudo queimado.
A banda pegou um ônibus e voltou pra ver o que tinha acontecido. O apartamento do amigo Gilmar era novinho, estava todo pintado e limpinho quando eles o deixaram três horas atrás. Agora estava fedendo a fumaça e todo preto. Os instrumentos se salvaram, mas as roupas foram todas carbonizadas. Suspeitaram que foram os colchões que estavam tomando sol na varanda… Cigarro, brasa, colchão, vento…
Mas o show deveria continuar e, com a roupa do corpo e ainda atordoados pelos acontecimentos, foram tocar. Não tocaram. Na primeira música o som estourou e houve um princípio de incêndio, rapidamente controlado.
- Porra, que urucubaca da porra é essa? – perguntou Morotó, o guitarrista.
Desanimados pelo show que não teve e mais atordoados ainda, se dirigiram à Universidade Federal. Era lá que fariam o segundo show (no dia seguinte) e conseguiram assim, com a produção do show, uma sala de aula para dormir. Deram a sala do DCE. Joe, o baixista, se adiantou e tomou posse da mesa de sinuca. Assim ele tinha uma pequena camada de feltro para as suas costas. O resto dormiu em cima dos biombos que eram usados para a exposição de fanzines.
No dia seguinte, de tarde, foram testar o som. Como uma passagem de som começa pela bateria, aproveitando o fato do show ser a dois andares de onde estavam hospedados e não suportando mais o próprio cheiro, usando a mesma roupa desde que saiu de Salvador, dois dias atrás, Morotó disse:
- Vão na frente que eu vou tomar um banho enquanto Rex monta a bateria…
Apenas uma toalha de banho se salvou e ainda assim, parcialmente. Era a única que estava fora da mala. Só dava pra se enxugar com as pontas, pois no meio havia um buraco enorme.
- Parecia que um míssil tinha passado pela toalha – lembrou Rex.
Todos usaram essa mesma toalha durante toda a viagem.
A banda foi montando o palco, ligando os amplificadores, os instrumentos, os microfones e Moska, o vocalista, não dando atenção para a urucubaca iminente, pegou a guitarra de Morotó pra ir testando o som, enquanto o amigo se banhava. Uma rara guitarra Snake, fabricada nos anos 60. Pendurou no pescoço, mas a correia não estava presa. Foi direto ao chão.
Morotó tomou um susto. Enquanto passava o sabão Phebo para fixar o seu topete, Moska entrou no banheiro desesperado.
- O que foi, rapaz? – perguntou Morotó.
- Aconteceu uma tragédia… – respondeu Moska, sentado no vaso, passando a mão na cabeça, nervoso…
- Pelamordedeus, o que foi dessa vez?
- Uma tragédia…
- Pelamordedeus, diga logo o que foi? Rex morreu?
- Pior…
- Joe morreu?
- Pior…
- Diga logo…
Aquela guitarra nunca mais foi a mesma, mas, contrariando todas as expectativas, o show foi tranquilo. Ou melhor, intranquilo, no bom sentido, se tratando dos Dead Billies.
Dez anos depois, em uma pizzaria, Rex se encontrou com Gilmar, o brother que emprestou o apartamento. Gilmar morava na Europa desde aquela época e a banda nunca conseguiu se desculpar pessoalmente com ele.
- Porra, man, queria te pedir desculpas mais uma vez – disse Rex.
- Que nada, já passou… depois eu até dei risada… Você soube da nota que saiu no jornal de Aracaju?
- Que nota?
- Sobre o incêndio…
- Não, ninguém sabe de nada, que nota é essa?
A banda, em seus shows, usava um material cênico composto por, entre outras coisas, uma capa de vampiro, velas e uma caveira. E, assim como os instrumentos, esse material, milagrosamente, também se salvou. Gilmar contou que quando os bombeiros arrombaram o apartamento e encontraram a capa, as velas e a caveira junto dos instrumentos, tiraram diversas fotos. No dia seguinte, uma dessas fotos estampava o jornal com a seguinte manchete:
“Banda de rock incendeia apartamento em ritual satânico”.