Coluna – Ricardo Cury – Jimmy Page na Bahia e sua influência no Cascadura
Tudo começou quando um amigo de Zezão que trabalhava na Varig ligou pra ele dizendo:
– Tô vendo aqui a lista dos passageiros, tem um guitarrista que você idolatra que tá aqui em Salvador e tá indo viajar hoje. Você vai ter que adivinhar…
– Chuck Berry? – perguntou Zezão.
– Não.
– Jeff Beck?
– Não.
– Jimmy Page?
– Yeah.
Jimmy Page pegaria o voo das 20 horas em direção a Londres. Início de 1995, o mítico guitarrista do Led Zeppelin estava andando pela Bahia, conhecendo a Chapada Diamantina, pensando em morar por lá.
Nos anos 70, nada foi maior que o Led Zeppelin. Aliás, segundo os fãs, só uma coisa foi maior que o Led Zeppelin: o próprio Jimmy Page. Além de guitarrista virtuoso, era criativo, sendo o principal compositor e produtor da primeira banda a superar todos os números dos Beatles, porém, sem a exposição comercial do quarteto de Liverpool. Led Zeppelin era no boca a boca, não aparecia na TV, nem tocava em rádio e, ainda assim, lotava estádios e vendia discos de forma estratosférica, jamais vista. Os riffs de guitarra e os shows do Led Zeppelin foram responsáveis por fazer toda uma geração de músicos pensarem “eu quero ter uma banda de rock”. “São os novos Beatles?”, perguntavam, frequentemente, os jornais da época. “Não, são maiores”, respondiam os fãs.
Durante os anos 90, virou lenda dizer que Jimmy Page foi visto em algum lugar da Bahia.
“O vi na padaria aqui da rua, na Pituba”, dizia um.
“Ele tava aplaudindo o pôr do sol no Porto da Barra”, dizia mais um.
“Vi ele na Chapada, com um saco do Paes Mendonça com a roupa dentro”, dizia mais outro.
Porém, a única verdade era a de que ele estaria no aeroporto 2 de Julho naquele 20 de fevereiro de 1995.
– Fiquei agoniado, tinha de inventar alguma história, precisava ir lá falar com ele, levar um disco pra ele autografar… – disse Zezão.
Pra não ir sozinho e para dividir aquele momento com alguém que também o admirasse, Zezão ligou para um amigo da escola e, posteriormente, da faculdade e do rock and roll, o guitarrista Tony Oliveira, na época integrante do Cascadura. Chamou, chamou e ninguém atendeu.
– Tentei algumas vezes e nada de Tony atender. Não tínhamos celular, o tempo foi passando e tive de ir sozinho. Peguei um Lapa-Aeroporto e fui ao encontro de Jimmy Lama.
Jimmy Lama chegou num Tempra preto. Saiu do carro, foi até o porta-malas, pegou sua bagagem e Zezão pensou “porra, é o cara”.
– Dei aquela gelada e fui a sua direção. Cheguei com o Led IV debaixo do braço e disse “Hi, Mr. Jimmy, você poderia assinar aqui?”.
Enquanto Page assinava na capa, bem em cima do ancião (personagem que ele interpreta no filme The Song Remains the Same), o então estudante de jornalismo Zezão já mostrava que era um profissional promissor e mentia:
– Eu sou o presidente do Mad Zaps. A Led Zeppelin’s fanclub.
– Really? – perguntou Page, rindo.
– Eu sei tudo sobre os seus passos aqui na Bahia.
– Really? – perguntou Page, preocupado.
Com a veia jornalística de Zezão, esse encontro com Jimmy Page iniciou o boato (verdadeiro) de que ele estava por aqui.
– Pra mim, foi foda. Eu estava em Los Angeles nessa época, estudando música, frequentando os locais que Jimmy Page frequentava quando ia por lá, pra ver se me batia com ele, e meus amigos me ligando e dizendo “vi Jimmy Page comendo acarajé no Rio Vermelho” – diz o guitarrista, cantor e compositor Paulinho Oliveira.
Antes de ir pra Los Angeles, Paulinho tocava em uma banda chamada Stone Bull, ao lado de Mauricio Braga na bateria, Luiz Fernando (L.F.) no baixo e Fernando nos vocais. Mesma formação do Led Zeppelin: uma guitarra, baixo, bateria e um vocalista. Além de tocar quase todo o repertório do Led Zeppelin em seus shows, a Stone Bull, em suas próprias composições, usava o Led Zeppelin como maior referência.
– Imaginávamos que éramos um Led atual. Um blues pesado com a coisa do metal da época – relembra Paulinho.
Mauricio se espelhava em Bonham, L.F. em Jones, Fernando em Plant e Paulinho em Page. Depois de três anos (92, 93 e 94) tocando nos bares de Salvador, Mauricio, L.F. e Paulinho foram estudar no M.I. (Musicians Institute), em Los Angeles, inclusive aparecendo em uma matéria pro Fantástico, justamente falando sobre o tal instituto e os brasileiros que iam estudar música por lá. Fernando ficou em Salvador.
Em L.A., a banda, como um trio, ainda tentou algo. O material que deixavam nas casas noturnas começou a surtir efeito, eles receberam convites, fizeram algumas apresentações, mas a hora de voltar pro Brasil já estava chegando.
No segundo semestre de 95, já de volta, Paulinho convidou Emerson Borel (1972-2004) para montar uma nova banda. Borel tinha sido guitarrista e principal compositor de uma das bandas mais relevantes e influentes do rock da Bahia. A primeira depois do Camisa de Vênus a ter alguma projeção nacional, mesmo que ainda no iniciante mercado independente. Os riffs de guitarra e os shows da Úteros em Fúria, no início dos anos 90, foram responsáveis por fazer toda uma geração de músicos baianos pensarem em ter uma banda de rock.
Borel e Paulinho então montaram a nova banda, mas não conseguiram baterista. Ainda sem nome, os dois viajariam juntos para passar o réveillon 95/96 em Lençóis, na Chapada Diamantina, e resolveram convidar Mauricio Braga para viajar com eles, com o intuito de, na viagem, convidá-lo para ser o baterista. Como atração do réveillon, show dos amigos do Dr. Cascadura. Chegaram lá no mesmo dia da banda.
– Os Cascaduras chegaram cansados, brigando pra caralho entre si. Foi no fim daquela formação com Jean (bateria) e Candido (guitarra). A relação entre eles já estava difícil – disse Paulinho.
Além deles, ainda tinha uma enorme comitiva de Salvador no local. Todos os representantes do rock sujo, como Lisergia, Dois Sapos e Meio e agregados, estavam por lá. Todo mundo no camping, bebendo e fumando tóxico.
Os rumores de que Jimmy Page também estava na pequena cidade para o réveillon surgiu com ares de histórias de duende:
– Vi Jimmy Page na Cachoeira do Sossego, é sério, eu juro. Ele tava até com um saco do Paes Mendonça… – jurou um dos integrantes da comitiva.
Um dia antes do réveillon, porém, Paulinho, Borel e os amigos Polho e Nei Bahia estavam num bar, de frente pra enorme ladeira da praça principal da cidade, sozinhos, quando Borel disse, quase parafraseando Moraes Moreira, “lá vem Jimmy Page descendo a ladeira”. Os outros olharam pra trás e confirmaram: era Jimmy descendo a ladeira, indo na direção deles.
Ficaram assistindo à cena, Jimmy descendo e cada um pensando no que fazer. O que iriam falar, se é que iriam falar alguma coisa… Ali estavam dois guitarristas do rock de Salvador, no meio do interior da Bahia, tendo um contato imediato com o guitarrista que fez eles dois pensarem um dia em ser guitarristas… E Jimmy foi chegando, chegando, chegando, todo mundo em silêncio, e quando finalmente Jimmy chegou, Borel levantou seu copo de cerveja e disse em bom tupi-português-guarani:
– Mr. Jimmy. Comer água.
Mr. Jimmy apenas sorriu, disse “não, não, muito obrigado”, seguiu seu caminho e foi embora, de short, chinelos, com os cabelos grudentos e um saco do Paes Mendonça.
Durante a festa do réveillon, a pergunta “será que ele vai aparecer?” era feita a todo o momento. O bar Lajedo estava cheio e o Dr. Cascadura fez seu show. No final, naquele fim de festa, Jean e Candido cederam lugar pra Mauricio e Paulinho tocarem uma música com o resto da banda. Ninguém imaginava que num futuro bem próximo aquela seria a formação que gravaria o segundo disco da banda. Paulinho colocou a guitarra em seus braços e, quando ia tacar um riff, olhou pra porta e viu Mr. Jimmy adentrando o ambiente.
– Eu sempre quis me encontrar com ele, mas não como um fã e sim como um colega de trabalho, com alguém nos apresentando “Jimmy, esse é Paulinho, um guitarrista de Salvador” – disse o músico.
A ocasião era aquela. Papéis invertidos. Jimmy era quem estava na plateia e ele no palco, com uma banda de rock and roll, uma calça boca de sino e uma Telecaster ligada no amplificador. O destino estava se encarregando de fazer a tal apresentação, dizendo “Jimmy, esse é Paulinho, um guitarrista de Salvador”.
Na mente de Paulinho, junto com o álcool, vieram todas aquelas músicas, solos de guitarra e performances magistrais. Se ele tocasse “Stairway to Heaven”, certamente seria linchado por todos, inclusive pelo próprio Jimmy. Então se lembrou de que a primeira música que Jimmy tocou junto com John Bonham, Robert Plant e John Paul Jones foi “The Train Kept a Rollin”, dos Yardbirds, e, sem pestanejar, atacou com ela. A banda seguiu com ele.
– Foi uma homenagem meio que piada interna, tipo “sou seu fã, mas não vou babar seu ovo”. Poderia ter tocado uma do Led, mas preferi ser mais sutil – contou o guitarrista.
Paulinho disse que não sabe a reação de Jimmy, mas Nei Bahia, testemunha ocular, disse que da mesma forma que ele entrou, ele saiu.
– Ele entrou, falou com o dono do bar, Paulinho iniciou a música, ele a reconheceu instantaneamente, se despediu do dono do bar, deu meia volta e foi embora – relatou Nei, compositor, parceiro de inúmeras músicas do Cascadura.
O cara foi o ícone dos anos 70, do movimento hippie, do rock and roll, da calça boca de sino, das batas e, 20 anos depois, sai da Inglaterra pra ir morar no interior da Bahia, em busca de sossego, e chega lá tem um flashback desses, se deparando com um lugar cheio de cabeludo, de boca de sino, miçangas, barbas mal feitas, batas, tocando rock and roll, tocando as músicas que ele tocava… “Quando esse ácido vai passar?”, pensou Jimmy.
Cinco dias depois, já em Salvador, Fábio Cascadura fez oficialmente o convite para Paulinho e Mauricio Braga entrarem na banda no lugar de Jean e Candido.
– Para Jimmy Page deve ter sido um inferno, mas pra gente foi uma coisa mística, e quando Fábio fez o convite, todos nós, sonhadores, pensamos “claro que vai dar certo, aquilo foi um sinal dos deuses do rock” – relembra Paulinho.
Mas na verdade, o evento do réveillon só fez desmistificar a coisa. Ver Jimmy Page mulambento, vestido com a camisa da banda carioca Zumbi do Mato, fumando Free Light, totalmente farofeiro, arruinou com o mito. Daí vem o apelido soteropolitano de Jimmy Lama.
E no primeiro dia do ano de 1996, Paulinho, Polho, Nei Bahia e Borel estavam no Uno, andando por Lençóis, fim de tarde, durante o crepúsculo, quando avistaram Jimmy Lama encostado no muro da pequena ponte, fumando seu Free Light, todo maltrapilho. Se Paulinho era fã mas não iria babar o ovo, Borel era fã, não iria babar o ovo e ainda faria sua reverência de forma mais particular. Ao passarem por ele, o saudoso Borel botou a cara na janela e, depois de “Mr. Jimmy, comer água”, a segunda mensagem que mandou pra o seu maior ídolo da juventude foi:
– Mr. Jimmy, o caminhão de lixo já passou…
Mr. Jimmy apenas sorriu, acenou e ficou ali, de short, chinelos e seu inseparável saco do Paes Mendonça.